"Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?"
(Amor, pois que é palavra essencial, Carlos Drummond de Andrade)
Quando você fala em
conquista, eu penso em desbravadores espanhóis do século XVI: armados até os dentes com seus
estandartes reais e sua generosa civilização a postos. Prontos a impor línguas,
estuprar jovens nativas, escravizar povos, ensacar culturas. Eu penso em
posseiros, em acampamentos do MST; fazendas pecuaristas improdutivas; grandes
plantações de soja; agronegócio. Eu poderia até pensar em agricultura familiar,
pequena propriedade, mas eu penso em latifúndio, eu penso nas contradições do
capitalismo, nas contradições do termo pro-pri-e-da-de e me agarro a minha mais
fajuta filosofia budista: não há posse, não há conquistas, não há direitos.
Você poderia
argumentar que há quem faça uso da terra estando ciente de tudo isso. Há quem
aproveite o que a terra oferece, sabendo que ela dá generosa, que não pede nada
em troca e que, por isso, não cabe exigir nenhuma segurança. Quando a gente
menos espera, estão aí os furacões, terremotos e outras combinações várias disso
que convencionamos chamar natureza só pra dizer que não é nosso. Com a casa nos
ares, as plantações alagadas e o trabalho destruído, nós fingimos não escutar.
Pois eu te digo que
não é seu. Que meu corpo não é território a conquistar – e mesmo se. Que você
não chega e coloca uma bandeira num pedaço e isso te dá direitos adquiridos,
que você vai e volta, sei lá quanto tempo depois, e a bandeira está ali,
exibindo o seu brasão. Também não é questão de tempo ou distância, posto que o
mesmo vale para quem fica, coabita, compartilha pão, espaços e sonhos. Tenho
pra mim que estes poucos chegaram a estudar a fundo a teoria, mas na prática
ficou faltando quebrar as cercas.
Antes que soe
grosseiro, acusação que já estou acostumada a receber, me defendo: meu corpo
também não é meu. O rompimento dessa falsa relação de posse é tão difícil que
na hora de colocar em palavras vem o pronome pos-ses-si-vo a tiracolo. É
costume o pronome, mas nem por isso. Esse pedaço de pele, carne e sangue com o
qual convivo tem suas próprias vontades e desvontades. Chora sem pedir licença,
dorme ou mergulha em longas insônias. Come muito mais do que eu gostaria, tanto
quanto descome. Igualmente bebe e desbebe. Sente calor e frio, tem sinapses
angustiantes, arrepios fora de hora, focaliza no estômago as dores mais fundas
que tampouco lhe pertencem.
Isso que nem é uma
coisa à parte, não depende de mim, não está sob meu domínio e a muito custo,
nesses vinte e três anos de convivência, venho tentando aprender a lidar. Não
digo que seja fácil nem que eu tenha sucesso constante na empreitada, mas se eu
já aceitei que mesmo com a convivência íntima e cotidiana não posso falar em
posse, não venha você.
Não desperdice suas
técnicas de guerra aprendidas, pois não há louros no final. Não há espólios,
nem haverá muralhas. Conquista é aquilo que se faz com uso de força militar
para dominar algo que não nos pertence, a gente tenta exercer poder, mas a
capilaridade felizmente nunca é tão ampla. Portanto, não transfira para mim sua
ilusão.
Não existe nem existiriam contratos estabelecendo
direitos de uso. Não houve mesmo para quem firmou acordo em praça pública,
digo, praia pública, com testemunhas e tudo o mais que se tem direito. Não há
direito que não seja o de viver. Todos vivem. E os corpos convivem – e se
entendem melhor do que as almas, sempre sabemos.
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